23 de junho de 2009

" - Por que está tão convencido?
- Se faz questão... não sei. Só sei que preciso ganhar, que essa é para mim também a única saída. É talvez por isso que tenho também a impressão de que devo ganhar na certa.
- Então precisa ganhar de qualquer maneira, já que está tão fanaticamente certo?
- Aposto que não acreditaria que eu seja capaz de sentir uma necessidade séria.
- Isso não me importa - respondeu Polina, em tom tranquilo e indiferente. - É uma pessoa desordenada e instável. Para que quer dinheiro? Não vi nada de sério nas razões que me deu outro dia.
- A propósito - atalhei - você disse que precisava reembolsar uma dívida. Boa dívida há de ser! Com o francês, suponho?
- Que perguntas são essas? Você está muito impertinente hoje. Andou bebendo?
- Você sabe que eu me permito dizer tudo e fazer-lhe às vezes umas perguntas muito diretas. Repito: sou seu escravo, e ninguém se envergonha do que diz um escravo, um escravo não pode ofender.
-Tudo isso é absurdo! Não posso tolerar essa sua teoria da "escravidão".
- Repare que se falo de minha escravidão não é porque deseje ser seu escravo; apenas a menciono como um fato que independe completamente de mim.
- Diga-me com franqueza, para que precisa de dinheiro?
- E para que você precisa saber?
- Como queira - respondeu, com um orgulhoso meneio de cabeça.
- Você não tolera a teoria da escravidão, mas exige a escravidão: "Responda e não discuta!" Muito bem, assim seja. Para que preciso de dinheiro, pergunta-me. Como, para quê? O dinheiro é tudo!
- Compreendo, mas não é preciso cair em semelhante loucura por desejá-lo! Pois você vai até o delírio, até o fanatismo. Há aí alguma coisa, algum objetivo especial. Fale sem rodeios, eu quero.

Parecia começar a irritar-se, e encantava-me que ela continuasse fazendo perguntas naquele tom arrebatado.
- Certo, há um objetivo - disse eu - mas eu não saberia explicar qual. Quando mais não fosse, porque com esse dinheiro eu me tornaria para você um outro homem, não um escravo.
- Como? Como conseguirá isso?
- Como conseguirei? Você nem sequer compreende como eu possa conseguir que me olhe a não ser como escravo! É justamente o que eu não quero mais, esses espantos e essas incompreensões.
- Você dizia que essa escravidão lhe dava prazer. Eu também achei isso.
- Achou? - exclamei com um estranho prazer. - Ah, que deliciosa ingenuidade sua! Ah, sim, sim, ser seu escravo é para mim um prazer. Existe, sim, prazer no último extremo do rebaixamento e da insignificância! - continuei a delirar. - Quem sabe, talvez exista igualmente no chicote, quando o chicote bate no lombo e rasga a carne... No entanto eu posso querer experimentar outros prazeres. Ainda há pouco na mesa, em sua presença, o general me passou um sermão por causa dos setecentos rublos por ano que, afinal, talvez eu não venha a receber dele. O marquês de Des Griuex (o francês) erguendo as sobrancelhas, olha para mim sem me notar. E eu, de minha parte, sinto uma vontade louca de agarrar o marquês pelo nariz diante de você!
- Fala de pateta! Em qualquer situação, é possível portar-se com dignidade. A luta, quando existe, eleva, não rebaixa.
- Frases feitas! Você simplesmente supõe que eu talvez não saiba portar-me com dignidade. Que embora sendo, admitamos, um homem digno, não sei portar-me com dignidade. Compreende que talvez possa ser assim? Realmente, todos os russos são assim, e você sabe por quê: porque os russos são por demais ricamente e diversamente dotados para encontrar de um momento para outro a forma adequada. Aqui o problema é de forma. Nós, russos, somos na maioria tão ricamente dotados que precisamos de gênio para encontrar a forma adequada. Mas o gênio frequentemente nos falta, pois em geral é muito raro. Somente entre os franceses e, quem sabe, alguns outros europeus, é que a forma está tão bem determinada que se pode ter um ar de extrema dignidade e ao mesmo tempo ser o mais indigno dos homens. Eis porque a forma tem tal importância para eles. O francês tolera sem pestanejar um insulto, um verdadeiro e profundo insulto, mas não tolera de maneira alguma um piparote no nariz, porque isto seria uma violação da forma tradicionalmente adequada. As nossas senhoritas têm tamanha queda pelos franceses exatamente porque veem neles uma forma boa. A meu juízo, aliás, não é questão de forma nenhuma, mas do galo que há neles, o coq gaulois. Aliás, isso é coisa que não posso entender, não sou mulher. Talvez os galos sejam bons. Mas estou dizendo bobagens, e você não me manda parar. Mande-me para com mais frequencias; quando falo com você, tenho vontade de dizer tudo, tudo, tudo. Esqueço toda e qualquer forma. Concordo inclusive em que não somente não tenho forma como me falta qualquer dignidade. Digo-lhe uma coisa. Não me importa nenhuma dignidade. Agora tudo se imobilizou em mim. Você bem sabe por quê. Não tenho na cabeça uma só idéia humana. Há muito tempo não sei mais o que se passa no mundo, nem na Rússia, nem aqui. Olhe, atravessei Dresden e nem lembro como Dresden é. Você sabe o que me absorvia. Como não tenho nenhuma esperança e sou um zero aos seus olhos, falo francamente: por toda parte só vejo a você, e o resto não me importa. Por que e como a amo, não sei. Sabe que talvez você não seja nada bonita? Imagina que não sei sequer se você é bonita ou não, mesmo de rosto? Seu coração com certeza é mau; e seu espírito deve ser ignóbil.
- Será talvez porque me acha ignóbil - perguntou ela - que pensa comprar-me com dinheiro?
- Quando foi que pensei comprá-la com dinheiro? - exclamei.
- Você começou a divagar e perdeu o fio. Se não a mim, é ao meu respeito próprio que você pretende comprar com dinheiro.
- Não, não é absolutamente isso. Já disse que me era difícil explicar. Você me esmaga. Não se irrite com a minha tagarelice. Você entende porque não deve irritar-se comigo: estou louco, só isso. Aliás, pouco se me dá que você se irrite. Quando estou lá em cima, em meu quartinho, basta-me lembrar ou imaginar o rumor de ser vestido para que fique a ponto de morder meus dedos. E por que você se irrita comigo? Porque me declaro seu escravo? Aproveite-se, aproveite-se de minha escravidão, aproveite-se! Sabe que um dia a matarei? Matá-la-ei não porque tenha deixado de amá-la, ou por ciúme; matá-la-ei simplesmente porque às vezes tenho vontade de devorá-la. Você está rindo...
- Absolutamente não estou rindo - disse ela, encolerizada. - Ordeno-lhe que se cale.

Deteve-se, quase sufocando de cólera. Palavra, não sei se ela é bonita, mas sempre gostei de contemplá-la quando ela se punha assim na minha frente, e é por isso que gosto de provocar a sua cólera. Talvez ela o tenha notado e se zanguasse de propósito. Disse-lho.
- Que asco! - exclamou com repugnância.
- Pouco me importa - prossegui. - Saiba que é perigoso passearmos junto: vem-me muitas vezes um irresistível desejo de espancá-la, de desfigurá-la, de estrangulá-la. Acredita que não chegaria a esse ponto? Você me põe em febre. Pensa que tenho medo do escândalo? Ou de sua cólera? Pouco me importa sua cólera! Eu amo sem esperança e sei que depois disso ainda a amarei mil vezes mais. Se eu a matar um dia, terei que matar-me também; pois bem, matar-me-ei o mais tade possível, para sentir esse intolerável sofrimento de estar sem você. Sabe de uma coisa incrível: eu a amo cada dia mais, embora isto seja quase impossível. Depois disso, como e não seria fatalista? Lembra-se, anteontem, no Schlangenberg, eu lhe sussurrei, quando você me provocou: "Diga uma palavra, e eu me atiro neste precipício". Se você tivesse dito a palavra, eu me atiraria. Não acredita que me atiraria?
- Que tagarelice estúpida! - exclamou.
- Pouco me importa que seja estúpida ou inteligente! - exclamei. - Sei que diante de você tenho necessidade de falar, falar, falar... e falo. Diante de você perco todo amor-próprio, tudo me é indiferente.
- Por que eu lhe ordenaria saltar do Schlangenberg? - perguntou ela em tom seco e particularmente ultrajante. - Seria perfeitamente inútil para mim.
- Admirável! - exclamei. - Você empregou essa admirável pelavra "inútil" só para me esmagar. Você para mim é tranparente. Inútil, então? Mas o prazer é sempre útil, e um poder feroz, sem limites, mesmo que sobre uma mosca, é também uma espécie de deleite. O homem é um déspota por natureza e gosta de fazer sofrer. Você gosta tremendamente.

Lembro que ela me examinava com uma atençao particularmente fixa. Certamente o meu rosto refletia naquele momento todas as minhas sensaçoes incoerentes e absurdas. Recordo agora que nossa conversa foi quase palavra por palavra igual ao que estou descrevendo aqui. Meus olhos estavam injetados de sangue. Juntava-se espuma nas comissuras de meus lábios. Quanto a Schlangenberg, juro sob palavra de honra, ainda agora: se ela me mandasse saltar de lá, eu saltaria!
Mesmo que o dissesse por brincadeira, que o dissesse com desprezo, com uma cusparada sobre mim, mesmo assim eu me atiraria!"
O Jogador - Dostoiewsky, Fiódor.

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